Minas é a montanha, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência, a verticalidade esconsa, o esforço estático; a suspensa região — que se escala. Atrás de muralhas, caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de serenidade. Aguarda-nos amparada, dada em neblinas, coroada de frimas, aspada de epítetos: Alterosas, Estado montanhês, Estado mediterrâneo, Centro, Chave da Abóbada, Suíça brasileira, Coração do Brasil, Capitania do Ouro, a Heroica Província, Formosa Província. O quanto que envaidece e intranquiliza, entidade tão vasta, feita de celebridade e lucidez, de cordilheira e História. De que jeito dizê-la? MINAS: patriazinha. Minas — a gente olha, se lembra, sente, pensa. Minas — a gente não sabe.
Sei, um pouco, seu facies, a natureza física — muros montes e ultramontes, vales escorregados, os andantes belos rios, as linhas de cumeeiras, a aeroplanície ou cimos profundamente altos, azuis que já estão nos sonhos — a teoria dessa paisagem. Saberia aquelas cidades de esplêndidos nomes, que de algumas já roubaram: Maria da Fé, Sêrro Frio, Brejo das Almas, Dores do Indaiá, Três Corações do Rio Verde, São João del Rei, Mar de Espanha, Tremendal, Coromandel, Grão Mogol, Juiz de Fora, Borda da Mata, Abre Campo, Passa Tempo, Buriti da Estrada, Tiros, Pequi, Pomba, Formiga, São Manuel do Mutum, Caracol, Varginha, Sete Lagoas, Soledade, Pouso Alegre, Dores da Boa Esperança… Saberei que é muito Brasil, em ponto de dentro, Brasil conteúdo, a raiz do assunto. Soubesse-a, mais.
Sendo, se diz, que minha terra representa o elevado reservatório, a caixa-d’água, o coração branco, difluente, multivertente, que desprende e deixa, para tantas direções, formadas em caudais, as enormes vias: o São Francisco, o Paranaíba e o Grande que fazem o Paraná, o Jequitinhonha, o Doce, os afluentes para o Paraíba, e ainda; — e que, desde a meninice de seus olhos-d’água, da discrição de brejos e minadouros, e desses monteses riachinhos com subterfúgios, Minas é a doadora plácida.
Sobre o que, em seu território, ela ajunta de tudo, os extremos, delimita, aproxima, propõe transição, une ou mistura: no clima, na flora, na fauna, nos costumes, na geografia, lá se dão encontro, concordemente, as diferentes partes do Brasil. Seu orbe é uma pequena síntese, uma encruzilhada; pois Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas.
A que via geral se divulga e mais se refere, é a Minas antiga, colonial, das comarcas mineradoras, toda na extensão da chamada Zona Mineralógica, a de montes de ferro, chão de ferro, água que mancha de ferrugem e rubro a lama e as pedras de córregos que dão ainda lembrança da formosa mulher subterrânea que era a Mãe do Ouro, deparada nas grupiaras, datas, cavas, lavras, bocas da serra, à porta dessas velhas cidades feitas para e pelo ouro, por entre o trabeculado de morros, sob picos e atalaias, aos dias longos em nevoeiro e friagem, ao sopro de tramontanas hostis ou ante a fantasmagoria alva da corrubiana nas faces de soalheiro ou noruega, num âmbito que bem congrui com o peso de um legado severo, de lástimas avaliadas, grandes sinos, agonias, procissões, oratórios, pelourinhos, ladeiras, jacarandás, chafarizes realengos, irmandades, opas, letras e latim, retórica satírica, musas entrevistas, estagnadas ausências, música de flautas, poesia do esvaziado — donde de tudo surde um hábito de irrealidade, hálito do passado, do longe, quase um espírito de ruínas, de paradas aventuras e problemas de conduta, um intimativo nostalgir-se, que vem de níveis profundos, a melancolia que coerce.
Essa — tradicional, pessimista talvez ainda, às vezes casmurra, ascética, reconcentrada, professa em sedições — a Minas geratriz, a do ouro, que evoca e informa, e que lhe tinge o nome; a primeira a povoar-se e a ter nacional e universal presença, surgida dos arraiais de acampar dos bandeirantes e dos arruados de fixação do reinol, em capitania e província que, de golpe, no Setecentos, se proveu de gente vinda em multidão de todas as regiões vivas do país, mas que, por conta do outro e dos diamantes, por prolongado tempo se ligou diretamente à Metrópole de além-mar, como que através de especial tubuladura, fluindo apartada do Brasil restante. Aí, plasmado dos paulistas pioneiros, de lusos aferrados, de baianos trazedores de bois, de numerosíssimos judeus manipuladores de ouro, de africanos das estirpes mais finas, negros reais, aproveitados na rica indústria, se fez a criatura que é o mineiro inveterado, o mineiro mineirão, mineiro da gema, com seus males e bens. Sua feição pensativa e parca, a seriedade e interiorização que a montanha induz — compartimentadora, distanciadora, isolante, dificultosa. Seu gosto do dinheiro em abstrato. Sua desconfiança e cautela — de vez que de Portugal vinham par ali chusmas de policiais, agentes secretos, burocratas, tributeiros, tropas e escoltas, beleguias, fiscais e espiões, para esmerilhar, devassar, arrecadar, intrigar, punir, taxar, achar sonegações, desleixos, contrabandos ou extravios do ouro e os diamantes, e que intimavam sombriamente o poder do Estado, o permanente perigo, àquela gente vigiadíssima, que cedo teve de aprender a esconder-se. Sua honesta astúcia meandrosa, de regato serrano, de mestres na resistência passiva. Seu vezo inibido, de homens aprisionados nas manhãs nebulosas e noites nevoentas de cidades tristes, entre a religião e a regra coletiva, austeras, homens de alma encapotada, posto que urbanos e polidos. Sua carta de menos. Seu fio de barba. Sua arte de firmeza.
Fonte Revista Prosa Verso e Arte
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