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sexta-feira, 25 de novembro de 2022

A música Guantanamera, seus significados, mistérios e folclores.

  





                                               Ray Titto y Los Fabulosos Calabares no Green Coffe Lounge

A cubana Guantanamera é uma das músicas latinas mais conhecidas do mundo, mas a origem e o significado da composição são incertos. Trata-se de uma manifestação folclórica do povo que vivia nos campos da cidade de Guantánamo, onde fica a base naval dos Estados Unidos.

O que se sabe é que a letra da versão mais famosa é uma adaptação livre dos primeiros versos da obra Versos Sencillos, de José Martí. Já o instrumental foi composto pelo músico Joseíto Fernández.

Mas o que significa guantanamera, exatamente? É o que a gente vai te contar neste texto. Vem ver!



Significado da música Guantanamera


Desde que foi descoberta nos anos 1960, Guantanamera se tornou uma das músicas cubanas mais tocadas no mundo. A composição instrumental é do músico José Fernández Diaz, o Joseíto, que integrava um sexteto em Havana.

Já a letra, como você viu, é livremente baseada nos Versos Sencillos (Versos Sensíveis, em tradução livre) do poeta cubano José Martí.

Ele é reverenciado como um herói nacional devido à sua atuação como mártir na Independência de Cuba do domínio espanhol, ocorrida em 1898.

Assim, a música é considerada como uma canção de revolução e também de paz. Vale lembrar ainda que Guantanamera tem origem popular e foi ganhando várias versões ao longo do tempo.



O que significa guajira e guantanamera?


Vem descobrir de uma vez por todas o significado de guajira e guantanamera.

Guajira

A guajira, também conhecida como punto cubano, punto guajiro ou apenas punto, é um tradicional ritmo popular dos campos cubanos. Tem forte influência musical da região da Andaluzia, na Espanha, com a música feita por mestiços nascidos na América.

A principal característica da guajira é o seu ritmo dançante, com predominância dos instrumentos de cordas e letras com temática rural. Para melhor compreensão, seria o equivalente cubano à moda de viola brasileira.

Além disso, o termo guajiro significa camponês. Era a maneira como os colonizadores espanhóis se referiam aos indígenas da região de La Guajira, entre a Venezuela e a Colômbia, que eram capturados para escravizá-los nos campos.

Assim, guajira tem um significado duplo: tanto pode ser camponesa quanto se referir ao ritmo musical.

Logo, guajira guantanamera pode tanto significar algo como guarija de Guantánamo, em referência ao ritmo musical, quanto camponesa de Guantánamo. No caso da canção, a primeira opção é a mais provável.



Análise da música Guantanamera


Vamos dar uma olhada na versão mais popular de Guantanamera e seu significado?

Guantanamera, guajira guantanamera, (De Guantánamo, guajira de Guantánamo)

Yo soy un hombre sincero, (Eu sou um homem sincero)
De donde crece la palma. (De onde as palmeiras crescem)
Y antes de morir yo quiero (E antes de morrer eu quero)
Cantar mis versos del alma. (Lançar meus versos d’alma)


Como podemos ver, a canção começa seguindo a tradição da guajira. Um homem do campo fala em primeira pessoa sobre a necessidade de expressar seus sentimentos mais profundos antes de morrer.

É interessante notar que a palavra palma (palmeira) pode ter um duplo significado. Isso porque em 1903, o presidente de Cuba, Tomás Estrada Palma, assinou um acordo com Theodore Roosevelt, cedendo a Baía de Guantánamo para servir como base naval dos EUA.

Assim, o poeta também pode estar lamentando o acordo político feito por Palma, que Cuba acusa de ter sido imposto à força, e que desde 1959 é alvo de protestos no país.

Guantanamera, guajira guantanamera (De Guantánamo, guajira de Guantánamo)

Cultivo una rosa blanca (Cultivo uma rosa branca)
En junio como en enero. (Em junho como em janeiro)
Para el amigo sincero, (Para o amigo sincero)
Que me da su mano franca. (Que me estende a mão)


Na estrofe acima, o narrador utiliza a rosa branca — que representa valores como respeito, honra, amor e humildade —, como uma metáfora que simboliza a lealdade entre amigos.

Assim, ele afirma que, seja no inverno ou no verão, ele se mantém leal ao amigo sincero, que estende a mão para ajudá-lo quando precisa.

Guantanamera, guajira guantanamera, (De Guantánamo, guajira de Guantánamo)

Mi verso es de un verde claro, (Meu verso é de um verde-claro)
Y de un carmín encendido. (E de um carmim aceso)
Mi verso es un ciervo herido, (Meu verso é um cervo ferido)
Que busca del monte amparo. (Que busca refúgio na montanha)
Guantanamera, guajira guantanamera (De Guantánamo, guajira de Guantánamo)


Na última estrofe, o poeta utiliza figuras de linguagem que representam seus sentimentos.

Com referências que remetem à difícil vida no campo (o verde da vegetação em contraste com o vermelho do sangue quente), ele expressa o amor pela sua terra e sente-se como um cervo ferido que, revoltado e impotente, busca refúgio.
Os últimos versos também podem ser uma referência ao povo cubano em si, que estaria sofrendo inúmeras injustiças, sem ter a quem recorrer.



Contexto histórico


Surgida no início do século XX, Guantanamera se tornou famosa na década de 1960, quando o popular cantor estadunidense Pete Seeger apresentou a canção em um show em Nova York.
Um pouco antes, em 1959, aconteceu a Revolução Cubana. E uma das reivindicações que o governo cubano tem feito desde então é a saída dos EUA da Baía de Guantánamo, cuja base naval é considerada ilegal.
Dessa forma, a canção é utilizada como um hino de liberdade e como protesto contra a presença dos EUA em solo cubano.
Quem é o autor de Guantanamera?

Precisar um autor para a música Guantanamera original é tarefa quase impossível. Como vimos, a canção surge do folclore popular e, então, ganha inúmeras versões ao longo do tempo.

No entanto, historiadores afirmam que Joseíto Fernández foi o primeiro a gravar a canção, com letra adaptada dos versos de José Martí. Em 1928, com apenas 22 anos, o músico criou a melodia para Guajira Guantanamera, como a música se chamava na época.

Sobre a repercussão, ele comentou que “muitos pensam que nasci em Guantánamo, outros pensam que sou camponês e, sem dúvida, nem uma coisa e nem outra”.
Sucesso em Cuba

Na época, a guajira era uma febre local e vários compositores criavam suas guajiras para animar os bailes. Joseíto Fernández, então, compôs a Guajira Guantanamera, que se tornou um grande sucesso.

Conta-se que, na década de 40, havia um programa de rádio com tema policial, que alternava a dramatização das cenas com trechos musicais. Ao final de cada parte, era tocado o coro Guantanamera, guajira guantanamera.
Com a popularidade do programa, tornou-se comum as pessoas dizerem cantou uma Guantanamera pra mim, uma expressão que significa me contou um fato triste.



Outras versões da história


O musicólogo Tony Evora afirma que o primeiro a incorporar os versos de Martí na canção foi o compositor espanhol Julián Orbón.
Ele teria sido professor do cubano Héctor Angulo, em Nova York, que mostrou a versão do mestre para Pete Seeger. E, assim, a música ganhou o mundo.


Outras versões que circulam dizem que o autor teria sido um camponês que vivia em Guantánamo. Poeta e radialista, ele encerraria seu programa com uma determinada melodia e, depois, com versos de José Martí, inspirado pela beleza das mulheres da cidade.



A versão do The Sandpipers


Uma das versões mais famosas de Guantanamera é a do grupo estadunidense The Sandpipers. Lançada em 1966, a canção é ligeiramente diferente e traz versos cantados em espanhol e inglês.

A música alcançou o primeiro lugar nas paradas de sucesso dos EUA naquele ano e conquistou sucesso mundial.

Fonte: Analisando letras · Por Renata Arruda

sábado, 20 de abril de 2019

Jorge Mautner em “Não há abismo em que o Brasil caiba”



A melhor definição do novo álbum do cantor e compositor Jorge Mautner veio do amigo e colega Péricles Cavalcanti: “Reencontrando, ouvindo e curtindo, agora, o ‘jeito’ Jorge Mautner de compor e cantar (e ‘discorrer’, livremente, sobre tudo!) nesse seu novo álbum, “Não há abismo em que o Brasil caiba”.
Há também uma inversão na frase de Péricles. Na verdade, bem próximo de completar inacreditáveis 80 anos, Mautner também se reencontrou com o seu melhor. Com o velho e bom vigarista Jorge que, ao lado do inseparável parceiro Nélson Jacobina, fez algumas das canções mais luminosas, inusitadas e modernas da nossa música.

“Não há abismo em que o Brasil caiba”, a começar pelo nome, é Mautner no esplendor da criatividade do começo ao fim. O título veio de uma exclamação do filósofo português, Agostinho da Silva, morto em 1994. Em Lisboa, ao ser informado sobre a crise do governo Collor, o filósofo disse: “o Brasil tem um destino tão grandioso, tão grandioso, que não tem abismo que o caiba”.

Discursivo, polêmico, repleto de ‘kaos’ e esperança, o álbum traz um autor reflexivo, desolado e, ao mesmo tempo, exaltando à unha personagens e situações que revigoram e florescem o dia a dia no coração do deserto. Entre elas, a encantadora professora “Catulina”:
Dona Catulina, é uma professora de já certa idade
e ela monta em seu burrico, no jumento
E eles vão trotando 40, 80, 120km
Só pra ela descer do burrico
e ensinar as criancinhas a ler e escrever.
Com saltos entre o ancestral e o contemporâneo, sagrado e profano, injustiça e misericórdia, Mautner relembra e surpreende em uma quase notícia de jornal:
É preciso arrancar
Da medula dos ossos
Dos nervos até a epiderme da pele
Este medonho cancro
Que matou Anderson Gomes
E que matou Marielle Franco

Repleto de referências ao candomblé, religião que encantou o compositor desde cedo, por conta de sua babá Lúcia, que era ialorixá, “Não Há Abismo em que o Brasil Caiba”, foi produzido pelo grupo Tono, que é formado por Bem Gil, Rafael Rocha, Bruno di Lullo e Ana Cláudia Lomelino.
Uma das melhores, mais encantadoras e contundentes canções do álbum é “Bang Bang” onde o poeta e escritor volta ao seu melhor do melhor:
A bala perdida
Lá do bang bang
Abre uma ferida
De onde escorre o sangue
Que se esvai e vai
E a pessoa morre gritando
Ai, ai, ai, ai, ai
É tristeza em tom absoluto
Parece que ninguém se lembra
De Joaquim Nabuco

No final das contas, “Não há abismo em que o Brasil caiba” é mais um belo resumo da capacidade que Jorge Mautner tem em traduzir para todos, de forma alegre e extremamente brasileira, a sua verve e seu conhecimento descomunal em assuntos díspares vindos de todas as partes.

Por Julinho Bittencourt

quinta-feira, 4 de abril de 2019

“Aí está Minas: a mineiridade”: uma declaração de Amor de Guimarães Rosa


Minas Gerais

Minas é a montanha, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência, a verticalidade esconsa, o esforço estático; a suspensa região — que se escala. Atrás de muralhas, caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de serenidade. Aguarda-nos amparada, dada em neblinas, coroada de frimas, aspada de epítetos: Alterosas, Estado montanhês, Estado mediterrâneo, Centro, Chave da Abóbada, Suíça brasileira, Coração do Brasil, Capitania do Ouro, a Heroica Província, Formosa Província. O quanto que envaidece e intranquiliza, entidade tão vasta, feita de celebridade e lucidez, de cordilheira e História. De que jeito dizê-la? MINAS: patriazinha. Minas — a gente olha, se lembra, sente, pensa. Minas — a gente não sabe.

Sei, um pouco, seu facies, a natureza física — muros montes e ultramontes, vales escorregados, os andantes belos rios, as linhas de cumeeiras, a aeroplanície ou cimos profundamente altos, azuis que já estão nos sonhos — a teoria dessa paisagem. Saberia aquelas cidades de esplêndidos nomes, que de algumas já roubaram: Maria da Fé, Sêrro Frio, Brejo das Almas, Dores do Indaiá, Três Corações do Rio Verde, São João del Rei, Mar de Espanha, Tremendal, Coromandel, Grão Mogol, Juiz de Fora, Borda da Mata, Abre Campo, Passa Tempo, Buriti da Estrada, Tiros, Pequi, Pomba, Formiga, São Manuel do Mutum, Caracol, Varginha, Sete Lagoas, Soledade, Pouso Alegre, Dores da Boa Esperança… Saberei que é muito Brasil, em ponto de dentro, Brasil conteúdo, a raiz do assunto. Soubesse-a, mais.

Sendo, se diz, que minha terra representa o elevado reservatório, a caixa-d’água, o coração branco, difluente, multivertente, que desprende e deixa, para tantas direções, formadas em caudais, as enormes vias: o São Francisco, o Paranaíba e o Grande que fazem o Paraná, o Jequitinhonha, o Doce, os afluentes para o Paraíba, e ainda; — e que, desde a meninice de seus olhos-d’água, da discrição de brejos e minadouros, e desses monteses riachinhos com subterfúgios, Minas é a doadora plácida.

Sobre o que, em seu território, ela ajunta de tudo, os extremos, delimita, aproxima, propõe transição, une ou mistura: no clima, na flora, na fauna, nos costumes, na geografia, lá se dão encontro, concordemente, as diferentes partes do Brasil. Seu orbe é uma pequena síntese, uma encruzilhada; pois Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas.

A que via geral se divulga e mais se refere, é a Minas antiga, colonial, das comarcas mineradoras, toda na extensão da chamada Zona Mineralógica, a de montes de ferro, chão de ferro, água que mancha de ferrugem e rubro a lama e as pedras de córregos que dão ainda lembrança da formosa mulher subterrânea que era a Mãe do Ouro, deparada nas grupiaras, datas, cavas, lavras, bocas da serra, à porta dessas velhas cidades feitas para e pelo ouro, por entre o trabeculado de morros, sob picos e atalaias, aos dias longos em nevoeiro e friagem, ao sopro de tramontanas hostis ou ante a fantasmagoria alva da corrubiana nas faces de soalheiro ou noruega, num âmbito que bem congrui com o peso de um legado severo, de lástimas avaliadas, grandes sinos, agonias, procissões, oratórios, pelourinhos, ladeiras, jacarandás, chafarizes realengos, irmandades, opas, letras e latim, retórica satírica, musas entrevistas, estagnadas ausências, música de flautas, poesia do esvaziado — donde de tudo surde um hábito de irrealidade, hálito do passado, do longe, quase um espírito de ruínas, de paradas aventuras e problemas de conduta, um intimativo nostalgir-se, que vem de níveis profundos, a melancolia que coerce.

Essa — tradicional, pessimista talvez ainda, às vezes casmurra, ascética, reconcentrada, professa em sedições — a Minas geratriz, a do ouro, que evoca e informa, e que lhe tinge o nome; a primeira a povoar-se e a ter nacional e universal presença, surgida dos arraiais de acampar dos bandeirantes e dos arruados de fixação do reinol, em capitania e província que, de golpe, no Setecentos, se proveu de gente vinda em multidão de todas as regiões vivas do país, mas que, por conta do outro e dos diamantes, por prolongado tempo se ligou diretamente à Metrópole de além-mar, como que através de especial tubuladura, fluindo apartada do Brasil restante. Aí, plasmado dos paulistas pioneiros, de lusos aferrados, de baianos trazedores de bois, de numerosíssimos judeus manipuladores de ouro, de africanos das estirpes mais finas, negros reais, aproveitados na rica indústria, se fez a criatura que é o mineiro inveterado, o mineiro mineirão, mineiro da gema, com seus males e bens. Sua feição pensativa e parca, a seriedade e interiorização que a montanha induz — compartimentadora, distanciadora, isolante, dificultosa. Seu gosto do dinheiro em abstrato. Sua desconfiança e cautela — de vez que de Portugal vinham par ali chusmas de policiais, agentes secretos, burocratas, tributeiros, tropas e escoltas, beleguias, fiscais e espiões, para esmerilhar, devassar, arrecadar, intrigar, punir, taxar, achar sonegações, desleixos, contrabandos ou extravios do ouro e os diamantes, e que intimavam sombriamente o poder do Estado, o permanente perigo, àquela gente vigiadíssima, que cedo teve de aprender a esconder-se. Sua honesta astúcia meandrosa, de regato serrano, de mestres na resistência passiva. Seu vezo inibido, de homens aprisionados nas manhãs nebulosas e noites nevoentas de cidades tristes, entre a religião e a regra coletiva, austeras, homens de alma encapotada, posto que urbanos e polidos. Sua carta de menos. Seu fio de barba. Sua arte de firmeza.

Fonte Revista Prosa Verso e Arte

terça-feira, 2 de abril de 2019

A Cigarra Cantadeira do Cerrado - Cora Coralina



Cigarra cantadeira e formiga diligente
Que tenho sido, senão cigarra cantadeira e formiga diligente
desse longo estio que se chama vida…
Meus doces, meus tachos de cobre…
Meus Anjos da Guarda, veladores e certos.
Radarzinho… Meus fantasmas familiares, meus romanceados
de permeio à venda dos dos doces.
Antes, lá longe, no passado, parindo filhos e criando filhos
e plantando roseiras, lírios e palmas, avencas e palmeiras,
em Jaboticabal, terra do meu aprendizado de viver.
terra de meus filhos.
Minha gente de Jaboticabal. Meus Anjo da Guarda, Radarzinho,
atento ao tacho, tangendo as abelhas que se danavam nos meus doces,
dando aviso certo na hora certa. De outas me apagando o fogo,
um modo de ajudar que só Radarzinho sabia. Em outros tempos, muito antes
tinha já plantado um vintém de cobre que regava com amor
na esperança de haver crias. Porção de vinténs
correndo para Aninha.

Meus fantasmas familiares do porão da Casa Velha da Ponte.
A todos, tantos, agradeço neste livro de vintém o auxílio, a alegria
que me deram o prazer daqueles que me ouviam contas estas estorinhas,
romances de um menininha que plantou num canteiro sombreado,
milho, arroz, e alpiste.
E o irmão pequeno tinha uma caminhãozinho de brinquedo,
e enquanto a roça crescia, o menino crescia
e ele enchia o caminhão daquela lavoura crescida no sonho da menina
que ia descarregar na máquina de seu Pinho, ali mesmo,
e volta cheio de moedas e notas de cinco mil réis.
Aonde anda a menina Célia, minha neta, que gostava de ouvir contar estórias repetidas com repetição sem fim?
Célia, a vida, você no passado, no presente e no futuro,
ela será sempre pra mim aquela que um dia ofereceu suas economias de criança para me ajudar na publicação de um livro…
– Cora Coralina, no livro “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”, 6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p. 64-65.

§

Confissões partidas
Quisera eu ser dona, mandante da verdade inteira e nua,
que nua, consta a sabedoria popular, está ela no fundo de um poço fundo,
e sua irmã mentira foi a que ficou em cima beradiando.

Quem dera a mim esse poder, desfaçatez, coragem de dizer verdades…
Quem as tem? Só louco varrido que perdeu o controle das conveniências.
Conveniências… palavras assim de convênio, de todos combinados,
força poderosa, recriando a coragem, encabrestando a vontade.
Conveniência… irmã gêmea do preconceito, encangados os dois,
puxando a carroça pesada das meias verdades.
Confissões pela metade…
Quem sou eu para as fazer completas?

Reservas profundas, meus reservatórios secretos, complexos,
fechados, ermos, compromissos íntimos e preconceitos vigentes, arraigados.

Algemas mentais, e tolhida, prisioneira, incapaz de despedaçar a rede
onde se debate o escamado da verdade…
Qual aquele que em juízo são, destemeroso dos medos
para dizer mais do que as meias dissimuladas, esparsas?

A gente tem medo dos vivos e medo dos mortos.
Medo da gente mesmo.
Nossas covardias retardadas e presentes.
Assim foi, assim será.
– Cora Coralina, no livro “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”, 6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p. 146.

§

Meu melhor livro de leitura
Estas estorinhas, sem princípio nem fim.
Estórias de Carochinha, edição antiga, desenho antigo, preto e branco.
Meus filhos, meus sobrinhos, meus netos… Minha descendência tão linda e sadia, minhas raízes ancestrais, minha cidade.
Meu rio Vermelho debaixo da janela, janelas da vida, meu Ipê florido, vitalizado pelo emocional de Clarice Dias.
Minha pedra morena. Minha pedra mãe. Quem assentará você sobre o meu túmulo no meu retorno às origens de todas as origens?
Minha volta ao mundo na lei de Kardec…
Vou reviver na menina Georgina.
Estarei presente no meu dicionário, meu livro de amor que tanto me ensinou e corrigiu.
Minhas estórias de Carochinha, meu melhor livro de leitura, capa escura, parda, dura, desenhos preto e branco.
Eu me identificava com as estórias.
Fui Maria e Joãozinho perdidos na floresta.
Fui a Bela Adormecida no Bosque.
Fui Pele de Burro. Fui companheira de Pequeno Polegar e viajei com o Gato de Sete Botas. Morei com os anõezinhos.
Fui a Gata Borralheira que perdeu o sapatinho de cristal na correria da volta, sempre à espera do príncipe encantado, desencantada de tantos sonhos nos reinos da minha cidade.

Mãe Didi… Por onde vão os rumos de meus pensamentos, sempre presente minha madrinha fada.
Eu a vejo em Mãe Didi.
Tia Nhorita, Didinha, seus farnéis inesgotáveis de bondade, de biscoito e brevidades, sustentando Aninha, desamada, abobada e feia, caso perdido, pensavam todos.

O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada.
Caminhando e semeando, no fim, terás o que colher.
– Cora Coralina, no livro “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”, 6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p. 62-63.


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Façamos um trato - Poema Mario Benedetti



FAÇAMOS UM TRATO

“Quando sinta sua ferida sangrar,
Quando sinta sua voz soluçar,
Conte comigo" (De uma canção de Carlos Puebla)

Companheira
Você sabe
Que pode contar comigo,
Não até dois
Ou até dez,
Mas contar comigo.

Se alguma vez perceber
Que ao olhar nos meus olhos,
Não reconhece o meu amor,
Não duvide dele,
Lembre-se de que sempre
Pode contar comigo.

Se outras vezes
me encontrar impaciente,
Sem motivo,
Não pense que diminuiu o meu amor,
Ainda assim, pode contar comigo.

Mas façamos um trato,
Também quero contar com você.
É tão lindo saber que você existe
E quando digo isso,
Quero dizer contar
Seja até dois,
Seja até cinco.

Não para que venha logo em meu auxílio.
Mas para ter certeza,
Na medida certa,
Que você sabe,
Que pode contar comigo.

Mario Benedetti
(Tradução livre – Eduardo Andrade)